O autor
A vida de Hemingway (1899 - 1961) foi bastante movimentada, talvez por isso tantos se atraem por trazer dados biográficos seus antes de falar de alguma obra.
É fácil encontrar, então não caberá a mim expor em detalhes tais dados, apenas citarei alguns para, talvez, despertar uma curiosidade. Foram uma série de experiências moldando sua personalidade e, consequentemente, sua obra. Cabe dizer que ele era um “machão” nos termos enaltecidos do século passado?
Participou de três guerras (foi voluntário na Primeira Guerra Mundial, por exemplo), adorava touradas, participava de safáris caçando animais grandes (ele tinha um daqueles enormes rifles de caçar elefantes), pescava e lutava boxe (inclusive desafiando alguns campeões na época e vencendo). Com sua amizade com James Joyce, bebiam todos os dias e desenvolveu um alcoolismo que escalonou em vários conflitos de sua vida. Em termos relacionais, teve quatro esposas e uma péssima relação com a mãe (que enviou pelo correio a arma utilizada pelo pai dele para se suicidar). Enfim, diz-se que, quando soube da morte do pai, comentou que algo semelhante aconteceria com ele. E aconteceu. Anos depois (1961) pegou um rifle em uma casinha em Ketchum e atirou contra ele mesmo.
Enfim, esses são apenas alguns dos detalhes da vida do autor. Apesar de sermos livres, na leitura de uma obra, para separarmos o autor de seu texto, no caso de Hemingway essa união biográfica com a literária é bastante interessante, pois notamos aspectos da própria personalidade do autor em sua forma.
Linguagem de Hemingway
Hemingway é conhecido por utilizar uma linguagem curta e econômica, uma forma direta de se escrever literatura. Há quem diga que essa deveria ser a única forma, sem muitos floreios ou adjetivações. Bom, eu discordo de toda e qualquer afirmação que queira definir uma arte com uma única maneira de realizá-la, mas é necessário reconhecermos a importância do estilo pelo qual o autor é famoso.
Apesar de toda a objetividade, se pensarmos de antemão pareceria algo seco e duro, quase como um texto acadêmico. Mas não é bem por aí. Até porque, o escritor criou a “Teoria do Iceberg” do texto literário (sobretudo na narrativa curta), na qual apenas a superfície da história é visível, enquanto as maiores profundidades emocionais e temáticas permanecem ocultas, esperando ser descobertas pelo leitor.
Curiosamente, uma narrativa marcada pela simplicidade, produzida por esse homem “durão”, revela uma profundidade emocional por trás dos cenários ou das ações dos personagens, convidando o leitor a contemplar as entrelinhas e compreender os temas mais profundos. Nas obras de Hemingway, encontramos um tema recorrente: personagens enfrentando a tragicidade da vida, encarando conflitos externos que espelham conflitos internos. Estariam os personagens do autor o ajudando a enfrentar seu próprio destino trágico? Eu não duvido disso. Por essa razão falaremos da última obra dele a ser publicada em vida, rendendo um Prémio Pulitzer de Ficção em 1953 e um Prêmio Nobel de Literatura em 1954.
A Obra
Em O Velho e o Mar (1952), a linguagem despojada de Hemingway coloca foco na luta do protagonista, Santiago, contra um peixe enorme.
Santiago é um pescador idoso, caracterizado por simplicidade, sabedoria, determinação e coragem. Ficou 84 dias sem pegar nenhum peixe e, como pescadores são supersticiosos, foi considerado azarado (além do possível etarismo que sofria), então não o convidavam para participar de outras embarcações nem ofereciam ajuda. A não ser Manolin, um jovem que era aprendiz e grande admirador de Santiago. Apesar de ser proibido de pescar com o velho, ajudava com tarefas como preparar os equipamentos de pesca e, sabendo das condições financeiras dele (o pescador que não pesca também não vende o peixe e, consequentemente, mal tem dinheiro para sustentar o básico nesse cenário), ajudava com alimentação e com um apoio emocional.
Santiago acreditava que superaria o azar enfrentando o mar aberto. Lá, poderia pescar um peixe maior e conhecia suas capacidades para isso. Apesar de algumas fraquezas físicas, toda a sua experiência e sabedoria provariam ser uma força compensatória. E, de fato, ele consegue. Há então uma série de descrições de Hemingway sobre essa luta de Santiago com o que ele descobre ser um espadarte (um peixe-espada). Foram três dias para conseguir vencer o animal e atá-lo no barquinho menor que o próprio peixe. Depois disso, precisaria lutar com tubarões para proteger sua pesca e chegar na costa.
Estrutura
A estrutura da obra é bastante econômica em termos da linguagem de Hemingway, do uso de personagens ou mesmo do enredo desprovido de subtramas ou desvios narrativos. O foco é a luta solitária de Santiago. Com isso, permite um ritmo linear que se intensifica a cada página em nossa busca enquanto leitores para saber o que acontecerá. O uso de palavras simples e diálogos curtos parecem expressar bem o isolamento do protagonista. Entretanto, há um traço poético na forma como transmite a exaustão física e emocional de Santiago, além das relações dele com Manolin, com o mar e com o peixe.
Com essas características, a estrutura física do livro se encurta. Portanto, é uma obra com um ritmo de leitura de, em média, umas três horas (claro, isso vai do ritmo de cada pessoa, mas há também uma série de audiobooks em plataformas como YouTube ou Spotify com a leitura completa do livro e a duração é mais ou menos essa).
Relações
Relação com a comunidade
Vou tratar as relações de Santiago na ordem cronológica do livro. E é através delas que veremos, na prática, a “Teoria do Iceberg” de Hemingway, pois todos esses posicionamentos de Santiago diante de algo representam muito mais do que a figura propriamente dita. O primeiro aspecto que chama a atenção é a relação dele com a comunidade, pois reflete seu isolamento. Há quem tenha pena e há quem o despreze pela idade e pelo azar, como se esse olhar o condenasse para uma desesperança.
Quantos não se imobilizam pelo olhar do coletivo? Se condenam porque não acreditam mais em nós. Não importa a época, se é no século passado ou hoje, se é em Cuba ou no Brasil, o olhar do outro recaindo sobre nós tem um peso amedrontador. No entanto, isso não imobiliza Santiago. Talvez sua simplicidade o ajude a carregar menos pesos na vida e a decisão de seu destino estaria nas mãos da natureza e não dos outros homens.
Relação com Manolin
Essa é uma parte bastante comovente do livro. Pois, apesar de tantos olhares descrendo de Santiago, Manolin prova o quanto um apoio de ao menos um indivíduo que creia em você também carrega uma força de grande importância. Dessa forma, Santiago prova que podemos filtrar e selecionar qual crença é mais apropriada para nossa coerência. Apesar de sua humildade diante do jovem amigo, reconhecia a amizade e apoio dele como essenciais (em vários momentos, quando está em alto mar, confessa o quanto gostaria que o rapaz estivesse com ele).
Manolin não é apenas aprendiz na palavra. Ele encarna esse aspecto como uma figura de exemplo do que é ser um aprendiz, contemplando Santiago com um olhar de respeito aos anos de experiência e absorvendo a sabedoria do velho com devoção. Manolin é uma esperança de sabedoria, pois, a meu ver, o sábio só é sábio por se ver sempre como um aprendiz. O respeito e o amor para com o ofício dão base para essa sensação de encantamento com aquilo que é simples na obra e o jovem parece ser aquele que passará isso gerações para frente, mantendo acesa essa chama de um trabalho consciente como uma promessa de continuidade.
Relação com o mar
Além do olhar de respeito (recíproco) de Santiago com seu aprendiz, a forma como ele vê e descreve o mar também é muito bela. Trata-se de uma relação profundamente simbólica, refletindo a complexidade da própria existência do pescador. Para Santiago, é muito mais do que um ambiente de trabalho, vendo-o como uma entidade viva, com quem tem uma conexão íntima e espiritual.
Santiago chama o mar de “la mar”, tratando-o como feminino e vendo ele como algo generoso e acolhedor, mas também cruel e implacável. É no mar onde Santiago buscará sua redenção pessoal e provar seu valor, tratando com respeito a possibilidade do gigantesco Oceano levar tudo embora. Santiago ama seu destino (o amor fati de Nietzsche do qual já comentamos por aqui), se entrega a ele também com devoção.
Sobre o enfrentamento da tragicidade da vida encontrado frequentemente nas obras de Hemingway, o mar é o palco dessa ação do protagonista. A visão de Santiago do mar, portanto, oscila entre amor e respeito, e essa dualidade reflete sua visão sobre a própria vida e a condição humana: uma luta constante, bela e ao mesmo tempo dura, que merece ser enfrentada com coragem e dignidade.
Relação com o peixe
O auge das relações de Santiago se dá com o peixe, indo além de uma simples luta. O olhar de amor e respeito de Santiago também é passado para o peixe, como um adversário digno e quase um igual. A cada momento dessa luta eles se aproximam não apenas pela linha de pesca (Santiago segura a linha com a própria mão, sem vara ou outros equipamentos), a admiração cresce ao sentir a resistência e a força do espadarte, chamando-o até mesmo de irmão em um momento. A luta com o peixe é uma honra para Santiago. Se vencesse, ele se provaria digno de ter sua carne e sobreviver dela. Não importam os resultados, a luta é a honra.
Santiago conversa em voz alta. Um exemplo de uma pergunta: “Como se sente, meu peixe?”, demonstrando uma empatia com aquele com quem lutava.
Quando o peixe salta, descobre seu tamanho, um espadarte maior dos que já havia visto (nunca havia pescado sozinho um desses). Santiago reage com essa reflexão:
“Por que teria ele saltado? Quase que diria que veio à tona d’água para mostrar-me como é grande. Agora já sei, seja lá como for”, pensou o velho. “Gostaria de lhe poder mostrar que espécie de homem sou eu. Mas, nesse caso, ele veria a câimbra que tenho. É melhor que ele julgue que valho mais, para ter mais possibilidades do meu lado. Gostaria de ser aquele peixe, e trocaria de bom grado a minha vontade e a minha inteligência para ter tudo o que ele tem”.
O mar e o peixe são a Natureza, são o destino e o incontrolável. Mesmo não podendo vencer efetivamente o destino (ou mesmo o tempo), Santiago continua lutando e é aí onde encontramos a nobreza desse homem simples.
O mar é um desconhecido, está sempre ocultando algo. Encarar com respeito uma jornada em direção a esse desconhecido é manter vivo o aspecto do mistério. Por mais que estudamos à fundo e teorizamos as coisas, quando crio a crença de que sei sobre algo, detenho apenas o conhecimento lógico e racional dessa coisa. Basta? Santiago traz o conhecimento da experiência, do respeito de que aquilo com o qual me relaciono pode ser muito mais do que minhas certezas. Quando contemplamos algo dessa forma, podemos fisgar algo. Não sabemos o quê ou se aquilo permanecerá conosco, mas também tem um valor e precisamos lutar por aquilo.
Devaleio
Bora dar uma viajada para finalizar?
Imagine agora o mar como um lado seu ou de sua própria personalidade, escondendo uma infinidade de coisas preciosas. Imagine um isolamento voluntário, mesmo que por pouco tempo, em que possa adentrar nesse lugar.
Aí você fisga um peixe magnífico. Ou seja, algo vivo, imponente e maior do que você imaginava. Ele carrega uma espada. Ou seja, algo que divide, discerne e ajudará você em processos de separação de algo (um exemplo disso é se você carrega muito a opinião dos outros sobre você mesmo, se separar disso é algo muito precioso). Enfim, você protege essa coisa (esse peixe) que conquistou em sua viagem e pode ser que ficará com ela por bastante tempo ou ao menos com parte dela.
Mas a experiência jamais poderá ser retirada e aí, quando a luz do sol bater na janelinha, perceberá que transformou algo em você.