Cem Anos de Solidão
Hoje vamos fazer uma visitinha à Macondo, a cidade fictícia criada por Gabriel García Márquez para Cem anos de solidão.
Nessa obra, acompanhamos os cem anos da família Buendía. Por ser tanto tempo (sete gerações), há muitos personagens. E mais, vários deles com nomes parecidos (ou iguais mesmo). Mas o autor pincela a narrativa com maestria, não deixando pontas soltas e dando devida atenção a cada um dos membros da família. Por essa razão, o ritmo é frenético: sempre tem algo acontecendo e o livro em diversos momentos se torna engraçado, contrastando com a carga dramática (e às vezes, trágica).
Constatando sua vastidão, não cabe aqui propor uma análise aprofundada, mas alguns diálogos com elementos da obra.
É fantasia?
O livro está “catalogado” no gênero Realismo Mágico, apesar do próprio autor não gostar muito dessa definição. Mas a característica de não fazer um pacto com a realidade concreta como um espelho para a obra é o que torna encantador a tantas pessoas. Os aspectos “mágicos” (ou fantásticos) do livro são repletos de símbolos, pois carrega a alegoria ou metáfora na vivência de um personagem (como borboletas amarelas perseguirem alguém ou a aparição de algum morto da forma mais natural possível). Além disso, a narrativa contém diversas referências bíblicas como o Êxodo e o dilúvio (“Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias”).
Algo marcante no Realismo Mágico é notarmos o quanto a magia ou o absurdo não nos impressiona mais, tratamos como natural ou corriqueiro. É coerente dentro do contexto onde o gênero se desenvolveu, pois, diante das ditaturas latino-americanas de repressões violentas, a metáfora foi uma forma de se desviar da censura, além desse aspecto de tratar o absurdo como algo cotidiano.
O gênero é atual e lido com sabor por todos, talvez por ainda estarmos desencantados com um mundo onde (e aqui eu apenas brinco) prometo buscar uma promessa que me comprometa em um dia não precisar prometer.
E eis a brincadeira. Esse aspecto lúdico de jogar com a realidade coloca espelhos simbólicos que, na verdade, a denunciam.
Surgem reflexões (de quinta?): pode até ser que a realidade concreta seja algo seco e sem encanto algum e preciso de um refúgio na fantasia como uma promessa de escapar dessa falta de sentido. Também vale pensar nela como mágica/fantástica, contendo o sentido nesse mistério representado em coisas simples como borboletas amarelas (essa pode ser uma boa conversa futura com Mircea Eliade).
Solidão
Eu menti. Na verdade, já me senti muito solitário (e quem nunca?). Mas a solidão contemplada aqui é do processo criativo. Estou construindo um texto ficcional e um dos temas que busco trazer nele é o da experiência cíclica. García Márquez traz isso com tanta excelência e a consequência foi eu ter a mesma sensação que todos os escritores (sobretudo iniciantes): humilhação. Soberba a minha sequer passar pela cabeça que Gabriel anos atrás pensaria em escrever um livro com esse intuito (e é engraçado o paradoxo de como se ver como pequeno é, muitas vezes, tentar se ver como grande). Digo isso para tranquilizar quem esteja em um processo artístico e se depare com uma figura inspiradora: ao invés de nos olharmos tão “de cima”, olhemos para frente. Ou melhor, para o chão onde nossos pés pisam e nos indagar se essa terra toda precisa de água para moldar a argila ou se tem mato para arrancar.
Enfim, o que essa sensação diz sobre mim? Ou, melhor dizendo, sobre o processo criativo. Sobre o desejo de alcançar uma voz, uma linguagem capaz de traduzir em forma de arte esse tema tão marcante a mim.
A forma encontrada pela maioria dos artistas é apresentada também em Cem anos de solidão: na repetição.
Girando e girando e…
… então escrevem novamente, tiram novas fotos, pintam novas cores ou desenham novos traços.
E esse trabalho solitário de traduzir um tema coletivo em uma experiência subjetiva para, depois, devolver ao coletivo, é cíclico.
O ofício, propriamente dito, é o mesmo, mas, no ciclo, nos refazemos.
É claro, sempre atentos aos vícios dentro de nossas artes (como alguns vícios de linguagem, na escrita). Sobre isso, dá para trocarmos uma ideia com Jung:
No domínio da psique os pattern of behaviour compulsivos cedem lugar a variantes de comportamentos condicionadas pela experiência e pelos atos volitivos, isto é, por processos conscientes. (JUNG, Carl G. A Natureza da Psique, §386)
E a vida não é assim também? Para além da solidão do processo criativo, da página em branco ou dos “erros” repetidos, voltamos constantemente às mesmas ações. A proposta de Jung é o processo de individuação, desenvolvendo uma atitude consciente perante o mundo (e a nós mesmos).
Em Cem anos de solidão, a experiência cíclica é representada na própria estrutura da obra (há vários retornos e referências a falas anteriores e a própria obra, dividida em vinte capítulos, parece recomeçar a partir da metade). Além disso, os nomes se repetem, os filhos e filhas que saem acabam retornando à Macondo e, por fim, vemos a ciclicidade nas ações repetitivas de alguns personagens, como montar e desmontar peixinhos dourados ou costurar e descosturar um véu, semelhante ao ato de espera de Penélope enquanto Ulisses está em sua Odisseia.
Se começamos com o Amor, Cem anos de solidão termina falando também sobre o amor (e se digo algo sobre o final aqui é apenas isso: é tocante, forte).
Como a experiência é cíclica (assim como o cego mascando chiclete no conto Amor, da Clarice), a conversa não acaba aqui. No próximo conteúdo continuarei a falar sobre esse mesmo tema, mas dialogando com outra obra que, logo na primeira frase, fala sobre isso.
Recomendações de leitura
Cem anos de solidão - Gabriel Gárcia Márquez. Considerado livro da vida para muitas pessoas (inclusive conhecidos) e a segunda obra mais importante de literatura hispânica (depois de Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes).
Obra Completa - Murilo Rubião. Uma referência de realismo mágico brasileiro, com contos desafiando nosso pacto de realidade, mas carregando metáforas que falam mais sobre a realidade do que ela mesma.