Foi difícil escolher um conto do livro Antes do Baile Verde, da Lygia Fagundes Telles. E a minha recomendação de leitura de hoje será essa. Leiam e releiam os contos. Quem solicitou a obra me apontou dois previamente: O moço do saxofone e Natal na Barca. Em um panorama geral da obra, todos os contos são saborosos de ler (muitos dão aquele gostinho de quero mais), pois Lygia utiliza de uma maestria incrível da narrativa, transportando-nos sempre para um lugar além dela. Há uma simplicidade de elementos, mas eles costumam dizer mais do que o que são em si. E, em minha experiência de leitura, é nos diálogos onde ela esbanja essa característica (claro, não sem a apresentação de cenário e objetos).
Podemos dialogar os contos de Lygia com o ensaio de Ricardo Piglia, Formas Breves. Nessa obra, o escritor argentino caracteriza o conto (enquanto estrutura narrativa) como contendo duas histórias: a aparente e a oculta. Haveria uma tensão no contar dessa narrativa para que ambas apareçam ao leitor.
Piglia também conta sobre a “Teoria do Iceberg”, de Ernest Hemingway. Depois de virar contista, o estadunidense defendia que o mais importante da história estaria obscurecido, como a parte não vista de um iceberg. Dessa forma, a narrativa seria construída “com o não-dito, com o subentendido e a alusão” (PIGLIA, Ricardo. Formas Breves, 2004, p.91). Ou seja, pode-se dizer que a narrativa oculta é o que esses escritores querem que chegue ao leitor.
E Lygia realiza isso de uma forma objetiva e bela. Vários dos contos são carregados com essa duplicidade e uma riqueza imagética que nos convida a tentar ler o texto de novo para entender se o que foi dito era sobre uma coisa ou sobre outra (ou sobre as duas), como no caso do conto A Ceia.
Mas, um dos textos que trata da duplicidade e foi recomendado por quem solicitou a leitura da obra aqui, é Natal na Barca.
CONTÉM SPOILERS DO CONTO NATAL NA BARCA
Quanto ao conto, eu sinto a quem não leu, mas não posso falar dele sem dar o famoso spoiler. Então, é fácil encontrar na internet para ler.
Ou, você pode assistir o vídeo da Julia Lemmertz lendo o conto na íntegra aqui:
Enfim, o conto:
Há uma densidade e uma estranheza já na primeira frase:
“Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva”.
Como assim, narradora? Você está em uma barca e não sabe ou não se lembra o motivo? Para piorar, de maneira simples ela descreve esse cenário trevoso e silencioso e tudo leva a crer que estamos lendo uma história de terror. Se alguém tiver uma conclusão depois de ler (se é ou não de terror), fique à vontade para comentar aqui:
E ela continua nos contando que apenas uma lanterna iluminava o caminho e, junto dessa narradora, estavam um velho e uma mulher com uma criança.
Quatro figuras fazendo uma travessia noturna em uma barca, e esse silêncio fúnebre. E aqui a Lygia evoca uma figura tão curiosa nesse conto, conseguem imaginar essa cena? Qual o efeito disso? Eu sinto uma estranheza ao me imaginar em um cenário desses, quase horripilante.
Enfim, conhecemos um pouco da narradora e do cenário, vamos à descrição dos personagens no segundo parágrafo:
“O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga”
Pronto, ela conseguiu aumentar a estranheza e, ainda, evocar uma outra imagem. Essa mulher com o bebê, ali, não parecia apenas essa mulher. Além do contraste da escuridão (do cenário e do manto) com a palidez dela, em uma descrição simples recorda bastante a imagem da Madonna (a Virgem com o menino). Essa ideia de evocar tal imagem é reforçada no próprio texto, logo abaixo, quando ela afirma ser Natal.
Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.
Além disso, em nenhum momento ela fala sobre algo ou alguém conduzindo essa barca, parecendo deslizar sozinha nas águas escuras. A própria imagem da barca, o cenário estranho e a citação anterior, evocam outra figura: o Caronte. Para quem não conhece, uma divagação breve aqui:
O Caronte era responsável por transportar os mortos pelo reino de Hades (a divindade responsável por esse reino inferior e pelos mortos). Um dos costumes funerários era o de colocar uma moeda (óbulo) na boca do morto, como pagamento pelo transporte da alma desse morto. Apesar do reino de Hades ser visto como uma contraparte sombria do Olimpo, todas as almas mortas vão até lá. E o Caronte pode transportar essas almas para três lugares: o Tártaro (onde estão aprisionados os Titãs e ocorrem as outras condenações eternas), o Campo de Asfódelos (onde vagam as almas que não são boas nem más, mas irrelevantes para a história) e, por fim, os Campos Elísios (um lugar mais paradisíaco, onde estariam os indivíduos mais virtuosos.
Voltando: a narradora afirma desejar conversar com a mulher desde que entrou na barca, mas o silêncio parecia conveniente. Então decide colocar a mão na água e o diálogo das duas surge a partir daí:
“— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.
— Mas de manhã é quente”.
Ela acrescenta depois que pela manhã o rio é quente e verde. Não poderei deixar de remeter ao clichê, mas todos sabem o que normalmente representa a cor verde: esperança. Não digo isso a toa, essa palavra combina perfeitamente com essa personagem. E digo mais, ela vem de Lucena e o significado desse nome em hebraico (Eli Hoshaná), seria algo como “Deus nos salve”. Eu não acho que Lygia escolheria esse nome por acaso.
E o que a esperança e o “Deus nos salve” tem a ver com essa mulher? Entendemos isso no diálogo com as duas. A criança no colo dela está doente e o farmacêutico de Lucena recomendou procurar um médico. E essa personagem passa a mostrar sua fé, dizendo que Deus não a abandonaria.
Lembram da sensação de estranheza? Sentimos um pouco mais através do olhar da narradora conversando com a mulher. Se arrepende de fazer perguntas, porque torna a conversa cada vez mais constrangedora (ao menos para ela), descobrindo que teve um outro filho de cerca de quatro anos que morreu no ano anterior (e o bebê no colo faria um ano), foi fazer uma mágica dizendo que ia voar e caiu do muro. Depois, a narradora pergunta do marido, e a mulher conta que ele abandonou ela para ficar com uma ex-namorada. Vejam como seguimos o estranhamento através das constatações da narradora:
'“Fixei-me nas nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter participado deles realmente. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido e ainda via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Intocável. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma obscura irritação me fez sorrir”.
Por outro lado, a mulher relata como sua fé foi sendo fortalecida com esses eventos. Sua voz era “quente de paixão”. Depois de um sonho onde vê o filho que morreu brincando com o Menino Jesus (mais uma imagem evocada, mas de forma literal dessa vez), se contagiou com a alegria dessa cena.
A narradora, sem reação a essa fé inabalável, acaba por espiar o bebê no colo da mulher, para descobrir que estava morto.
“Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto”.
Gente, que cena, né? Tem realmente elementos que lembram uma narrativa de terror. Em um corre-corre a barca chega no destino e aparece um bilheteiro e… o bebê acorda. A reação leitor(a)-narradora parece ser a mesma:
“— Acordou?!”
A mulher se despede desejando um bom Natal, o bilheteiro conduz o velho que sai falando com o amigo imaginário (esse velho é citado apenas no começo e no fim). E assim termina a narradora: “Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente”.
Enfim, notamos o aspecto duplo na leitura desse conto e pela fala da própria Lygia no vídeo acima. A duplicidade fala através das personagens: pela da fé da mulher com a criança, podemos considerar um milagre de Natal. De outra forma, temos a narradora, podendo pensar que foi criação da cabeça dela. Há também toda a imagética cristã da mãe cujo filho é morto, mas volta a vida em seguida.
Vale o que vier. E é assim que se constrói um bom diálogo. Podemos partir do olhar de um amor ao destino da mãe, com sua fé que “remove montanhas”, tratando tudo com naturalidade, sem desabar. Também podemos partir com um olhar cético, crítico ou apenas esperançoso. Sobre o olhar da narradora e a associação com uma narrativa de terror, um dos elementos que contribui é que ela passa uma sensação de ansiedade para nós (caso seja algo da cabeça dela), pois preenchemos lacunas diante do medo (e o terror se aproveita desse efeito), fechamos diagnósticos ou julgamos as coisas: “está morto”, ponto. Ou, concluímos algumas possibilidades de medo baseado em experiências anteriores, como uma lógica do trágico (se a mulher só viveu tragédia até então, o que vejo no momento só pode ser mais uma).
Quem nunca criou uma lógica do trágico para si? “Toda vez que piso nesse lugar, uma coisa acontece…”, “toda terça-feira acontece algo ruim comigo”, “toda virada de ano dá confusão para mim”. Enfim, parece até que voltamos em nossos temas das narrativas anteriores, não? A experiência cíclica.
Paro por aqui, me delonguei mais do que gostaria. O que tenho para concluir é isso: para além da Teoria do Iceberg ou da análise das formas breves de Piglia, se temos ou não uma história 1 e história 2, como propõe o autor, Lygia transcende. Ela fala por si, naquele vídeo acima: “a liberdade”. Quer mais que isso? Mas eis sua maestria, sua sagacidade. A liberdade do leitor de contemplar a obra e imaginar da sua forma é muito mais acessível quando uma escritora meticulosa como ela constrói um texto que nos deixe livre.
Obrigado Lygia, pela travessura da travessia, por me permitir tal liberdade.
E obrigado a todas as leitoras e leitores da newsletter!
Abraços e até a próxima.